quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Do lado de cá da minha sacada*

Salvador é escura. Vista do alto da minha sacada, Salvador mais parece uma cidade retratada em longos filmes mudos da década de 30. Salvador se perde em tamanha escuridão que lhe dão uma dimensão noir. Daqui de cima vejo tudo como expectador, um voyeur sem que ninguém me perceba.

Vejo cada detalhe que vai tomando as ruas. De tão cheias, aos poucos no compassar do tempo, vai ficando vazia. Como se estivesse defiando. Lentamente o barulho também se esvai, em meio às pessoas que loucamente transitavam pelas ruas congestionadas. Às vezes penso que são elas, as pessoas, que trazem e carregam consigo toda a loucura transformada em caos. E assim do alto da minha humilde e singela sacada, que acredito ser amarela, mas de tão desgastada com o tempo parece cinza.

O prédio onde está fincada o meu “camarote” deve ter uns cem anos de existência. Muitas histórias ele deve guardar com os inúmeros moradores que aqui estiveram. Reza a lenda que aqui já foi de tudo. De abrigo para freiras recém chegadas do interior da Bahia, há um famoso bordel de nome desconhecido. Nela percebo cada passo, cada suspiro, cada respiração ofegante, cada grito que de tão estrondoso rompe a escuridão feito um clarão de cinema, quando um carro fita nossa cara com seus faróis fortes numa perseguição desenfreada em busca de marginais, delinqüentes, gangster, mendigos, prostitutas e travestis. Pessoas que habitam essa escuridão.

Seres que preferem o frio da madrugada e a luz tênue da lua para manifestarem seus desejos. Dessas figuras notívagas os meus olhos já avistaram cada um. Todos sem exceção já passaram por debaixo e em frente a minha sacada. Alguns já até me conhecem e às vezes pedem para que eu jogue um cigarro. - Ô patrão!Joga um mata pulmão desse aí? E com seus olhos esbugalhados me chamam a atenção. Parecem sempre estarem famintos. E de certa forma estão. Se o cigarro lhes alivia a aflição. Eu de prontidão jogo dois e aviso: Ô chefe. Economiza viu. Um para hoje e outro é para amanhã. Eles fazem sinal de ok e seguem seu caminho até se perderem numa esquina qualquer.

De todos os tipos que vejo passar uma categoria me chama a atenção. E que muitas vezes, fazem do meu prédio abrigo para se proteger da chuva e dos ventos fortes que sopram em muitas madrugadas. Elas se espremem debaixo da marquise que fica colada numa loja popular de artigos de 1,99, alojada no térreo. Às vezes escuto nitidamente suas conversas, suas reclamações, seus deboches com uma outra qualquer, seus medos. Às vezes escuto também seu silêncio. Eles são perturbadores. De certa forma de tanto ouvi-las me tornei uma espécie de confidente sem que elas percebam que eu estou ali. As travestis me fazem refletir. As travestis talvez de todas as outras categorias sejam as únicas que parecem sofrer mais.

Por isso comecei a observá-las mais atentamente. Assim que a noite cai e a escuridão toma Salvador e as ruas, vielas, becos, esquinas e avenidas as travestis começam a chegar. Lentamente elas vêm vindo. O único sinal que as denúncia, são os saltos dos seus sapatos, que ao tocar no chão, fazem aquele barulho que todos conhecem. Elas chegam sempre em grupo, nunca sozinhas. Impecáveis. Assim posso classificá-las. Elas investem boa parte do que ganham em beleza. As travestis nunca estão de qualquer jeito. Elas fazem questão de estarem bonitas, porque elas gostam de chamar a atenção. Chamar a atenção para elas é a certeza de que seu negócio vai indo bem.

E à medida que a madrugada se aproxima inúmeras travestis passam pela minha sacada. Ouço seus gritos, suas risadas e muitos dos seus termos que fazem parte de um vocabulário próprio. Alguém sabe o que é ocó? Muito menos eu. Depois de um tempo descobri que é moleque, esses garotos que ficam pelas ruas tirando a paz das pessoas, principalmente das travestis. E “mapôa”? Conhecem? Mapôa no linguajar das travestis é mulher. E assim elas vão desfilando pérolas da nossa cultura lingüística popular. Códigos como existem em qualquer outro grupo. Antes havia dito que dos grupos as travestis me chamam a atenção. E agora posso lhes falar que por alguns motivos.

O primeiro deles é pela sua beleza única. Não tem como deixar de notar uma travesti. Elas carregam consigo toda uma carga feminina que se sobressai pelo exagero. O exagero é um verbo que elas conjugam diariamente. E assim elas se tornam mulher, tendo nascidas homens. O segundo é pela coragem de desejarem seguir o curso da sua natureza e serem travestis. Mudarem seu corpo fisicamente, delineando novas formas, injetando produtos, fazendo um corpo feminino. É como se elas fossem cirurgiões delas mesmas. Além dessa transformação dolorosa e que às vezes causa a morte, elas ainda tem que ter coragem para enfrentar a família, a sociedade e terem que viver a margem muitas vezes.

É preciso ser muito homem para passar por tudo isso e ainda na maioria das vezes, terem a rua como única forma de sobrevivência. E o que você ve na cara de uma travesti além do batom vermelho escarlate? Um sorriso de um lado ao outro da boca. Terceiro é que dos grupos vulneráveis, que sofrem preconceito como os gays, lésbicas, bissexuais, as travestis são as que mais sofrem retaliação e discriminação. Elas colocam a cara todos os dias para bater. Elas estão na rua, na madrugada. E quem as protege ou deveria proteger muitas vezes bate. Realmente ser travesti é um ato infindável de coragem. Por isso a minha atenção se voltou para esse grupo cheiroso, bem arrumado e que ainda dar prazer.

Daqui do alto vejo as pessoas passarem nos seus carros chiques ou simples jogarem pedras nas travestis, insultos nas travestis, latas nas travestis. Vejo travesti correr e se esconder atrás de árvores, travestis chorarem e gritarem pela polícia. Dias seguidos vejo a dor e a delícia de ser travesti em Salvador. Aqui do alto da minha sacada, eu vejo todos os dias, o quanto Salvador é escura. E o único brilho, surge dos inúmeros lábios carnudos, dos brincos que cintilam e das roupas que chamam a atenção pela vaidade e coragem de todo dia, dia após dia, colocarem a cara na rua e serem elas mesmas. André que virou Rânela, Fernando que virou Maria Fernanda, Robson que virou Robkely, Jorge que virou Viviane e muitos outros que estão por aí.

De tanto observar comecei a tentar chamar a atenção delas com meu cigarro. Porque como personagens da madrugada o cigarro é acessório indispensável. Assim sabia, que com o maldito do cigarro, logo, logo elas chegariam até mim. Foi preciso maços de cigarros para atrair a atenção das travestis. Como elas já vivem numa pressão tremenda, elas não dão muita atenção aos moradores, para que eles não procurem confusão. Muitas vezes eu percebia que elas me viam e fingia não ver. Assim passaram-se meses e nada das desgraçadas me darem um sorrisinho qualquer.

Percebi que precisava ser mais enérgico e deixei propositadamente um vaso de planta pequeno cair. Ao estraçalhar-se no chão vejo duas caras pintadas, com cabelos batendo na cintura olhando para mim. “Não tem educação não?”, a loira platinada falou. “E se isso cai na minha cabeça coisinho? Podia me deixar louca?, a negra falou. Prontamente pedi desculpas e falei que tinha sido o meu gato que pulou e se esbarrou na plantinha. Elas entenderam e quando eu estava saindo ouço a negra falar: “Ô coisinho, coisinho... cê ta aí?”Me virei para a rua e olhei. “Você pode me arrumar um cigarrinho aí meu bem”?”.

Perfeito! A comunicação estava feita. Agora era ganhar a confiança de uma por uma e conhecer de perto e intimamente o que sentem, o que passam e o que pensam as travestis. Era como se eu quisesse descobrir como era numa forma metafórica, a vida das travestis “entre o primeiro batom, a troca de roupa e a cara na rua. E eu fui fundo...

Desci. E entre um cigarro e outro demos risadas. Conversamos sobre eleição. Elas não acreditam mais em políticos. E quem acredita. Falamos sobre o cabelo da loira que depois descobri ser um aplique. Do peito da negra que carrega vários miligramas de silicone. O tempo foi passando até que o primeiro cliente parou e de guloso levou as duas. Despedimos-nos e avistei a luz vermelha da traseira do carro ficando pequenina à medida que desciam a rua sendo tomado pela madrugada. Passaram-se semanas e as duas travestis que conheci me apresentaram a tantas outras. Numa das conversas elas me falaram da ATRAS – Associação das Travestis de Salvador, que todas as quintas, às 16h fazem uma reunião com muitas delas para discutirem vários temas. Elas me convidaram a participar de uma reunião e conhecer Milena Passos, presidente da associação.

Foi nessa reunião que um mundo desconhecido se abriu para mim. E lá pude perceber o quanto somos privilegiados por temos nossos problemas totalmente minimizados frente ao que cada uma passa e vivem todos os dias. E são sobre esses problemas e também alegrias, que irei apresentar cada uma das meninas que conheci e que desejo dividir com vocês a partir de agora. Tomem um copo d´água, sentem-se confortavelmente, acendam um cigarro (os que fumam), coloquem para tocar coisas do tipo Edith Piaf, Nina Simone, Eta James, Elis Regina, Maria Betania ou alguém que vocês gostem muito, respirem fundo e comecem a leitura. Do lado de cá da minha sacada só desejo uma coisa. Que vocês nunca vejam as travestis como coitadinhas. Mas infinitamente desejo que vejam as travestis como elas são. Seres humanos. Que sentem e sangram, como qualquer um de nós.

Aguardem os próximos passos...

texto fábio salmeron